De manhã acordava bem cedo, não havia motivos para desperdiçar o dia a dormir mesmo que a noite tivesse sido longa. O bikini era o traje de todos os dias, quer estivesse sol ou não. Muitas vezes andava descalça, gostava de pisar o chão da rua quente e de sentir nos pés a textura, igualmente quente, do muro que percorria toda a baía. Saía-se de casa apenas com a toalha na mão, nada mais. Se houvesse fome bastava subir os degraus de cimento da praia e ir à esplanada comer um gelado, ou partilhar a famosa dose de batatas fritas com ketchup, que eram comidas uma a uma com um palito. Assim, as manhãs e as tardes eram passadas na praia, na areia escura, fina e macia, com brincadeiras no mar, saltos das rochas e passeios a nado duma praia à outra. A água é transparente e viam-se cardumes de peixes mínimos e cinzentos a fugir dos meus pés. Lembro-me de um dia a água estar tão quente que nem refrescava do calor que queimava a pele, cá fora.
As noites de pleno verão eram passadas na esplanada, com jogos de cartas longos e conversas disparatadas. Uma vez por outra havia desafios na guitarra. Noites de riso, de olhares e de cumplicidade. Éramos sempre muitos, as idades variavam mas ali as diferenças pouco se notavam. As melhores noites eram as passadas no balcão da casa da I., nas cadeiras de madeira branca e com lona às riscas brancas e cor-de-laranja. Conversas e jogos de todo o tipo. Lá, aprendi a distinguir a cassiopeia e a ursa maior das outras estrelas que, naquele céu negro parecem existir em maior quantidade. Se o balcão da I. falasse, tinha muito que contar.
Noites no cais antigo de pedra, com a lua a reflectir no mar ondulante, que alguém comparou aos versos da música dos Xutos “Aqui ao luar, ao pé de ti, ao pé do mar, só o sonho fica só ele pode ficar”.
Com a I. entrei em casas abandonadas, donde tirei pratos antigos, castiçais e colheres que, de tão antigas, se tornaram quebradiças. Com a I. trepei à varanda duma casa fechada donde não conseguia sair com medo das alturas. Com a I., apanhei boleia de carrinhas de caixa aberta dum lado ao outro da baía, cá fora, na dita caixa, e em pé. Com a I. e com o grupo apagámos as luzes da baia, de noite, dos candeeiros de rua e das casas. E não foi uma vez, nem duas.
No fim do verão os dias tornavam-se mais escuros, o mar mais revolto e já não dava para passar o dia na praia porque a areia escasseava. Gostava quando chovia, os pingos da chuva eram gordos e o mar ficava cinzento da cor das nuvens. As tardes de praia eram substituídas por tardes de jogos de sueca, de copas, de espelho, de peixinho, de burro em pé e sentado, de truques inventados, cozinhar panquecas, de passear pelas imensas vinhas que estão pela encosta da baía e deliciarmo-nos com a paisagem única. E era sobretudo nesta altura, em que os imigrantes deixavam a ilha, que a baía era ainda mais nossa.
Na altura de dizer adeus, os olhos enchiam-se de lágrimas, davam-se abraços, faziam-se promessas de escrever cartas (que eram escrupulosamente cumpridas) e as lembranças eram trazidas nas malas, nos bolsos, na pele e no coração.
Chamam-me a Joaninha de São Lourenço. Por algum motivo é. A verdade é que fui uma privilegiada.
2 comentários:
janeee, adorei, ate me arrepiei a ler!! Faz-me lembrar um pouco as minhas férias quando era mais nova em casa dos meus avós. :D
Esta curta narração é de uma rara beleza. Faz-me lembrar as primeiras páginas de um romance que agora não me recordo. Um texto a continuar, daqui a uns tempos - espero bem que sim. Um abraço ternurento.
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